ANÁLISE DOS PROCESSOS FONOLÓGICOS EM TEXTOS DE ALUNOS DO ENSINO FUNDAMENTAL
Juliana Treicha Toledo (FURG)[1]
RESUMO:
Este trabalho tem por objetivo verificar, descrever e analisar alguns desvios de escrita na produção textual de alunos cursando o ensino fundamental, com base na fonética e fonologia do português brasileiro, bem como propor atividades para auxiliar os alunos na produção adequada da escrita alfabética e ortográfica. A dinâmica deste processo se deu a partir da elaboração e aplicação de uma atividade de produção textual em sala de aula, em uma turma de 7ª série. Logo após, descreveu-se os tipos de desvios de escrita encontrados nas produções textuais dos alunos, seguido da apresentação das atividades propostas para ajudá-los na escrita.
PALAVRAS-CHAVE: Desvios fonológicos, Aluno, Escrita.
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho fundamenta-se na linguística, ciência que visa à descrição das línguas. Lidando com as propriedades universais da linguagem humana, a linguistica busca explicações para procedimentos comunicativos, dando relevância à língua falada e escrita dos diferentes grupos sociais.
Ao deparar-se com um desvio na escrita, pode-se dizer que algum fenômeno linguístico foi a motivação para sua ocorrência, pois não se trata de um fenômeno aleatório e desmotivado. A conduta do professor diante disto é de grande importância para a superação do desvio por parte do estudante. Muitas vezes, quando se aponta os “erros” de um texto, não se discrimina o texto, mas sim o sujeito que o produziu, por isso, deve-se ter grande cuidado ao lidar com os desvios dos alunos. O desvio pode ser aproveitado como um ponto de partida para que o professor compreenda a forma como o aluno pensa e, partindo disto, elaborar sua próxima conduta de intervenção.
Nessa perspectiva, é essencial que o professor saiba que existem semelhanças entre aquisição da linguagem oral e a aquisição da escrita, principalmente em relação ao trabalho de construção e descoberta realizada pela criança (ABAURRE, 1988). Nesse sentido, lembra Abaurre (1988, p.140):
As crianças de um modo geral recorrem à oralidade para fazer várias hipóteses sobre a escrita, mas usam também a escrita, dinamicamente, para construir uma análise da própria fala.
Baseados nisso, alguns trabalhos mostram que os processos fonológicos ocorridos na aquisição da linguagem aparecem nos desvios da escrita das crianças. Com base nos fenômenos dos desvios fonológicos, este trabalho teve como objetivo analisar tais desvios presentes na escrita de crianças da 7ª série.
Para tal, foram analisados os desvios encontrados na escrita de alguns sujeitos, baseado na seguinte classificação: erros devido ao reflexo da fala (Cagliari, 1997), erros devido às convenções ortográficas do Português (Morais, 2002; Monteiro, 2010) e erros devido à ocorrência de processos fonológicos (Varella, 1993; Ilha, 2003; Freitas, 2007; Fronza, 2009).
2. DESCRIÇÃO E ANÁLISE DOS ERROS DE ESCRITA
2.1 Desvio devido ao reflexo da fala
São desvios que refletem a forma de falar do sujeito. Podemos observá-los, conforme Cagliari (1997), nas seguintes variações fonéticas do português brasileiro: Monotongação dos ditongos /ey/ e /ow/ seguidos de fricativa na sílaba seguinte (Ex: peixe → pexe); Ditongação (Ex: dez → deiz); Semivocalização de /l/ para [w] (Ex: Balde → baude); Substituição de /l/ por [r] (Ex: globo → grobo); Elevação das vogais pretônicas (Ex. estrela → istrela); Elevação das vogais postônicas finais (Ex. bolo → bolu). Baseado nisso, encontrou-se os seguintes desvios nos textos analisados das crianças:
Para -> Pra = Síncope do /a/, pois houve a supressão de um fonema do meio do vocábulo.
Ponto de vista -> Pontodevista = Escreveu-se assim, pois o “de” não tem força, então juntou-se com a sílaba anterior e posterior (hiposegmentação).
Se acabam -> Seacabam
Por causa -> Porcausa
A violência -> Aviolhencia
No lugar -> Nolugra
Por isso -> Poriso (caso do vocábulo terminado em /R/ que liga-se com o vocábulo seguinte devido a começar por uma vogal, sendo assim, a vibrante se transforma em tepe).
Faz -> Fais = Ditongação e erro ortográfico.
Mas -> Mais
Roubar -> Roba = houve apócope do “r” final e síncope do “u”.
2.2 Desvio devido às convenções ortográficas do português Brasileiro
O Português Brasileiro possui um sistema de escrita alfabético, ou seja, seus fonemas são representados por letras. Logo, os sujeitos aprendendo a escrever terão que representar conscientemente, por meio da letra, o fonema inconsciente (Ilha, 2010). Além disso, deverão se apropriar de convenções ortográficas próprias da língua escrita, cujas relações entre fonema-letra podem ser tanto regulares como irregulares. Com base em Morais (2002, p.27), tais correspondências serão abordadas a seguir:
Relações regulares
Essas podem ser incorporadas pela compreensão. É possível prevermos a forma correta sem nunca termos visto a palavra anteriormente. Citamos dois tipos: regulares diretas e regulares contextuais.
Relações regulares diretas
É uma relação direta entre fonema-letra, de tal forma que um fonema é representado por somente uma letra. Não há nenhuma outra letra para representar o referido fonema.
Relações regulares contextuais
A letra (ou dígrafo) que deverá ser empregada é definida pelo contexto.
Fonema letras
/k/ c antes de a, o, u
qu antes de e, i
/g/ g antes de a, o, u
gu antes de e, i
/s/ s no início de palavras, antes de a, o e u – sapo, sorte, sucesso.
/z/ z em palavras que começam com o fonema /z/ - zinco
/ž/ j antes de a, o, u – jabuti, jogo, caju.
/R/ rr intervocálico – carro
r no início de palavra – rato
r antes de n – honra
/r/ r intervocálico - caro
/ñ/ nh - pinha
/λ/ lh - palha
Relações irregulares
Essas exigem a memorização por parte do aluno.
/s/ s – seguro; c – cidade, x – auxílio, ss – cassino, sc piscina,
sç – cresça, z – giz, ç – força, xc – exceto
/z/ s – casa, x – exame, z – zebu
/ž/ g – geléia, girafa
j – jiló, jeito
/š/ x – xícara, enxada
ch – chuva, enchente
Além dessas, temos os seguintes empregos envolvendo ortografia:
- O emprego de H inicial – hora
- A disputa do L com o LH diante de certos ditongos – Júlio e julho
- Certos ditongos da escrita que têm uma pronúncia reduzida – caixa.
Em vista disso, são comuns os desvios que ferem as convenções ortográficas da língua escrita. Baseado nisso, encontrou-se os seguintes desvios nos textos analisados das crianças:
Fonemas com múltiplas representações:
O fonema /s/ pode ser representado pelas letras SS, Ç, SC, S, C, SÇ, Ç, NS, X:
[s] – pássaros -> pasaro
consciência -> conciência começam -> comesão
fizessem -> fizecem aproximar -> aprosimar
crescendo -> crecendo assumir -> asumir
sermos -> cermos impressão -> impresão
alucinados -> alusinados consciente -> consiênte
O fonema /Z/ pode ser representado pelas letras S, Z, X:
[z] – pesadas -> pessadas
faz -> fais
vez -> ves
usuários -> usuarioz
capazes -> capases
fazendo -> fasendo
dizem -> disem
Símbolos gráficos com valores múltiplos fonológicos:
[x] – [∫] mexe- meche. O fonema /∫/ pode ser representado pelas letras x ou ch.
- [z] exame -> esame. O fonema /ž/ pode ser representado pelas letras z, x ou s.
[k] pode ser representado pelas letras c antes de a o u
qu antes de e, i:
Enquanto - > Em canto
Seqüela - > cecuela
Troca das nasais /m/ e /n/:
entram – emtram
quando- quamdo
juntando – jumtando
2.3 Desvios devido à ocorrência de processos fonológicos
São erros devido à ocorrência de processos fonológicos – não-produção de segmentos, metáteses (inversões de segmentos) e substituições (um segmento é substituído por outro) - nas seguintes estruturas silábicas complexas do Português: ataque complexo e núcleo; ataque, núcleo e coda (Ilha, 2003). Baseado nisso, encontrou-se os seguintes desvios nos textos analisados das crianças:
Não produção de segmentos em posição de coda:
Nunca -> Nuca
Ơ Ơ
/ \ / \
A R à A R
| | \ | | \
N C N C
n u n n u (n)
Metátese silábica: a inversão dos segmentos dentro da sílaba:
Roubar -> Robra
Ơ Ơ
/ \ / \
A R à A R
| | \ | | |
N C N
b a r b r a
botar -> botra
Ơ Ơ
/ \ / \
A R à A R
| | \ | | |
N C N
t a r t r a
drogas -> dorgas
Ơ Ơ
/ \ / \
A R à A R
| | | | | \
N N C
d r o d o r
tentar -> tentra
Ơ Ơ
/ \ / \
A R à A R
| | \ | | |
N C N
t a r t r a
As substituições envolvendo o vozeamento:
a) Mudança de [+voz] para [-voz]
/ ʒ/ -> /∫/ -> Desejada -> Desechada
/d/ -> /t/ - > Madeira -> Mateira
Podiam -> Potiam
Elisão do s e o do i, ou o mais provável seria o esquecimento do i:
Chegar à cegar pode ser esquecimento do h ou a troca do fonema /∫/ pelo /s/...
3. ATIVIDADES PROPOSTAS PARA AUXILIAR OS ALUNOS NA PRODUÇÃO CORRETA DA ESCRITA
3.1 Ajuda em relação aos desvios ortográficos:
Atividade 1:
- Levar para as crianças palavras que contenham fonemas que possuem mais de uma representação, e palavra por palavra, pedir para que elas localizem a palavra corretamente escrita em suas frentes de forma que possam vê-la facilmente;
- As crianças fecharão os olhos e pensarão em algo que lhes pareçam familiar e tranqüilizante. Quando o sentimento for forte, eles abrirão os olhos e olharão para a palavra escrita corretamente;
- As crianças moverão os olhos para cima e para esquerda e imaginarão em sua tela mental a palavra escrita;
- As crianças observarão suas imagens mentais e escreverão as letras que vêem. Confrontarão o que escreveram com a ortografia correta. Se estiver errada, voltarão ao passo número 1;
- As crianças observarão em suas imagens mentais e soletrarão a palavra de trás para frente. Revisarão a ortografia. Se estiver incorreta, voltarão ao passo número 3.
Sugestões:
• Imaginar a palavra na sua cor predileta;
• Fazer as letras pouco claras sobressaírem tornando-as diferentes das outras – por exemplo, maiores, mais brilhantes, mais próximas, de cor diferente.
• Dividir a palavra em grupos de três letras e criar a imagem usando três letras de cada vez.
• Se for uma palavra longa, diminuir as letras o suficiente para que se possa ver facilmente a palavra inteira.
3.2 Ajuda em relação aos desvios devido ao reflexo da fala:
Atividade 2:
-Fazer ditados das palavras de maiores dificuldades encontrados na turma (ditado individual).
Entregar os ditados de cada um (já corrigido) e propor à seguinte:
1) Em casa cada aluno verificará as palavras que errou e deverá pesquisar como se escreve a palavra corretamente (em dicionários, livros, internet);
2) Cada aluno, para a próxima aula, deverá trazer as palavras, corretamente escritas, das quais erraram no ditado; além de também levarem para aula cartolina, canetinha colorida (o professor levará cola colorida com glitter);
3) Pedir para que cada aluno escreva no cartaz as palavras que pesquisaram de forma colorida com as canetinhas, e os vocábulos que erraram, deverão pintar com a cola colorida.
4) Em seguida expor os cartazes nas paredes de aula.
3.3 Ajuda em relação aos desvios de processos fonológicos:
Trava-línguas envolvendo padrões silábicos complexos:
Ataque, núcleo e coda (Consoante-vogal-consoante)
Consoante-vogal-consoante /r/
Porco crespo, toco preto
“Larga a tia, lagartixa!
lagartixa, larga a tia!
Também com os poemas à seguir:
As borboletas
Vinícius de Moraes
Brancas,
Azuis,
Amarelas
E pretas
Brincam
Na luz
As belas borboletas
Borboletas brancas
são alegres e francas.
Borboletas azuis
gostam muito de luz.
As amarelinhas
são tão bonitinhas!
E as pretas, então…
Oh, que escuridão!
Ataque complexo e núcleo (consoante – consoante - vogal)
“Três pratos de trigo para três tigres tristes”.
“O brinco da Bruna brilha”.
“Um papo de pato, um prato de prata”.
“O padre Pedro tem um prato de prata”
“O prato de prata é do padre Pedro”
“Pedro pregou um prego na pedra”
“Três traças traçadas traçaram três trajes sem trégua”
É preto o prato do pato preto.
Bagre branco, branco bagre
Sugestão de atividade:
- Pedir para que leiam (cantem) os poemas com os travas línguas e depois escrevam as palavras.
Consoante-vogal-consoante /N/
Não consinto que confundas funda com cinto
Nem consinto que confundas cinto com funda.
Através de Parlendas
Parlendas são rimas infantis, em versos de cinco ou seis sílabas, para divertir, ajudar a memorizar, ou escolher quem fará tal ou qual brinquedo.
Trava-línguas envolvendo os sons consonantais:
/t/ e /d/:
“O Tatá tá?
Não, o Tatá não tá
Mas o tio do Tatá tá
e quando o Tatá não tá
e o tio do Tatá tá
é o mesmo que o Tatá tá
tá? Tá”.
Alô, o tatu taí?
Não o tatu não tá,
Mas a mulher o tatu tando
É o mesmo que o tatu tá.
O tempo perguntou pro tempo
qual é o tempo que o tempo tem.
O tempo respondeu pro tempo
que não tem tempo
pra dizer pro tempo
que o tempo do tempo
é o tempo que o tempo tem.
“Quando digo “Digo”
Digo Digo, não digo Diogo
Quando digo Diogo
Digo Diogo, não digo digo”.
O doce perguntou pro doce
qual é o doce mais doce
que o doce de batata-doce.
O doce respondeu pro doce
que o doce mais doce que
o doce de batata-doce
é o doce de doce de batata-doce.
“Três duendes tristes tentavam deitar em três dedais”.
/ š / e / ž /:
“O caju do Juca
É a jaca do Cajá
Já a jaca da Juju
É o caju do Cacá”
“O caju do Juca
A jaca da Cajá
A jaca da Juju
E o caju do Cacá”.
“Lá em cima daquele morro chato,
tem uma moça chata,
com um tacho chato na cabeça.
Moça chata,
Esse tacho chato é seu?”.
Tacho sujo, chuchu chocho.
A chave do chefe Chaves está no chaveiro
O Juca ajuda: encaixa a caixa, agacha, engraxa.
5. CONCLUSÃO
Optou-se por este tema uma vez que se considera essa questão como sendo muito instigante e importante para o ensino da língua materna. Além disso, acredita-se que a realização desta pesquisa possa contribuir para uma melhor compreensão da aquisição da escrita por crianças. Assim sendo, talvez se possa dar subsídios linguísticos, mais especificamente fonológicos, aos professores para que acompanhem e compreendam o desenvolvimento da escrita. E, além disso, tais subsídios poderão auxiliar na elaboração de procedimentos pedagógicos envolvendo a superação dos desvios.
Com isso, acredita-se que a partir desses estudos, muito se avançará, resultando em contribuições fundamentais para o entendimento dos processos fonológicos, para o oferecimento de subsídios basilares para o tratamento de desvios de fala e, também, para o exame e a proposição de pressupostos e de questões relativos à teoria.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABAURRE, Maria Bernadete M. O que revelam os textos espontâneos sobre a representação que faz a criança do objeto escrito? In.: KATO, Mary. A concepção da escrita pela criança. São Paulo: Pontes, 1988.
CAGLIARI, Luis Carlos. Alfabetização e Lingüística. São Paulo, Scipione, 1997.
FERREIRO, Emília & TEBEROSKY, Ana. A psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.
FREITAS, Gabriela. Erros Fonológicos: Uma ligação entre a aquisição da fala e da escrita. In: BONILLA, G. F. & KESKE – SOARES. Estudos em aquisição fonológica. Santa Maria: UFSM, PPGL-Editores, 2007.
FRONZA, C. A. Porque investigar a sala e a escrita. In: BONILLA, G. F.; KESKE-SOARES & BRUM-DE-PAULA, M (Orgs). Estudos em aquisição fonológica. Santa Maria: UFSM, PPGL-Editores, 2009.
ILHA, Susie Enke. A aquisição da estrutura silábica na escrita inicial de crianças e adultos: uma relação com a consciência fonológica. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Tese de Doutorado, 2003.
ILHA, Susie Enke. Atividades para aprendizagem da ortografia do português. In: TAGLIANI, Dulce Cassol. Lingüística e Língua Portuguesa: reflexões. Curitiba: Editora CRV, 2010.
MONTEIRO, Carolina Reis. A aprendizagem da ortografia e o uso de estratégias metacognitivas. Cadernos de Educação, Faculdade de Educação – UFPEL, n 35, 2010.
MORAIS, José. A arte de ler. São Paulo, Editora da Universidade Estadual Paulista, 1996.
MORAIS, Artur Gomes. Ortografia: ensinar e aprender. São Paulo: Editora Ática, 2002.
OTHERO, Gabriel de Ávila. Processos fonológicos na aquisição da linguagem pela criança. ReVEL, 2005.
VARELLA, Noely. Na aquisição da escrita pelas crianças ocorrem processos fonológicos similares aos aquisição da fala?. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada) – Instituto de Letras e Artes: PUCRS, 1993.