NOTÍCIA DE POPULARIZAÇÃO DA CIÊNCIA: DA ANÁLISE DO GÊNERO AO LETRAMENTO CIENTÍFICO

 

Tânia Maria Moreira (UFSM/PPGL-LABLER)

Thaiane da S.Socoloski (UFSM/PPGL/CAPES-LABLER)

Janete Teresinha Arnt (UFSM/PPGL/CAPES-LABLER)

 

 

INTRODUÇÃO

 

Este trabalho é parte integrante do projeto intitulado Análise crítica de gêneros com foco em artigos de popularização da ciência, elaborado e coordenado pela professora Drª. Désirée Motta-Roth, no Laboratório de Pesquisa e Ensino de Leitura e Redação (Labler) da Universidade Federal de Santa Maria/RS. Esse projeto tem como unidade de análise notícias de popularização da ciência (PC) coletadas de  jornais e revistas em inglês e em português.

No presente estudo, temos por objetivo final propor atividades didáticas voltadas à introdução ao letramento científico, em Língua Portuguesa, no Ensino Médio, com foco no gênero discursivo notícia de popularização da ciência (PC). Inicialmente, apresentaremos na próxima seção as concepções que nortearam a elaboração das atividades. Em seguida, descreveremos como se caracteriza o gênero notícia de PC da área de informática em um jornal do estado do Rio Grande do Sul. Por fim, daremos alguns exemplos de    exercícios de pré-leitura, leitura e pós-leitura, que levam à desconstrução das características do gênero em questão.

CONCEPÇÕES IMPORTANTES

Gênero Notícia de PC

Gênero discursivo é uma entidade dinâmica e sócio-cultural que se materializa por meio de textos; é uma forma de agir, regida por convenções estabelecidas e reconhecida pelos membros especialistas de uma comunidade discursiva, que convergem na direção de uma mesma finalidade (SWALES, 1990).

O processo de PC é entendido como uma prática social que visa a permitir uma proximidade da sociedade com o discurso e os avanços da ciência (GERMANO, 2005, p. 4). Esse processo se desenvolve com o apoio de uma infinidade de atividades e atores além do cientista, tais como os elaboradores de políticas públicas, jornalistas, técnicos, historiadores e sociólogos da ciência bem como o público (Hilgartner,1990, p. 533). Segundo Motta-Roth (2009, p. 134-135) a PC se apoia minimamente em dois momentos, na sequência de estados de um sistema de produção de conhecimento que inclui um conjunto de gêneros, passando inicialmente pela publicação de um artigo científico na mídia especializada e, subsequentemente, na transferência de textos de um contexto a outro ou na “recontextualização” desse conhecimento até chegar à popularização na mídia de massa.

 

O gênero notícia de PC, enquanto um dos gêneros que constitui o processo de PC,  é concebido como um texto que reescreve e reporta uma pesquisa científica em uma linguagem simples, de fácil compreensão ao leigo, com foco na metodologia experimental, nos resultados centrais e no significado desses resultados (MOREIRA; MOTTA-ROTH, 2008, p. 4). Em outras palavras, o gênero notícia de PC se constitui como um conjunto de manchete, lide, evento principal, nesse caso, a realização de uma nova pesquisa, contexto, eventos prévios, expectativas e avaliação do significado e relevância da pesquisa para a vida do leitor leigo  (MOREIRA; MOTTA-ROTH, 2007).

 

Letramento Científico

Letramento é concebido como o estado ou a condição de quem se envolve nas numerosas e variadas práticas sociais de leitura e de escrita para atender às exigências sociais (SOARES, 2000, p. 44), tais como: compreender as especificações de uma bula médica, encaminhar documentos solicitando providências aos órgãos públicos, participar de discussões e votação de temas polêmicos, decidir sobre produtos a serem adquiridos para consumo ou ao prepará-los para consumos, etc. (MOREIRA, T. M. Popularização da ciência e gêneros discursivos: uma possibilidade de ensino em língua materna, no prelo, p. 6)

Ciência é entendida, à luz da sociologia, como “uma prática social de conhecimento, tarefa que vai se cumprindo em diálogo com o mundo e que é fundada nas vicissitudes, nas opressões e nas lutas que o compõem e a nós” (SOUZA SANTOS, 1989, p. 13). Grosso modo, ciência pode ser definida como conhecimento de qualquer objeto ou fenômeno por intermédio da observação, identificação, descrição, investigação ordenada e explicação do fenômeno com base em um paradigma[1] vigente (MOTTA-ROTH, 2009, p. 132).

Letramento científico é percebido como o desenvolvimento de “competências de leitura e escrita de conteúdos de natureza científica ou tecnológica” (ANDRADE, 2003) por meio do trabalho com gêneros discursivos.

 

Modelo pedagógico de ensino

 

Ensinar linguagem na perspectiva de gênero não é o mesmo que ensinar tipos de textos – narrativo, descritivo, argumentativo, etc. Ensinar, nessa linha teórica, consiste em trabalhar com a compreensão do funcionamento da linguagem na sociedade e na sua relação com os indivíduos situados em cultura e instituições específicas, “com as espécies de textos que uma pessoa num determinado papel tende a produzir” (MARCUSCHI, 2005, p. 10-12).

Um dos modelos pedagógicos elaborados para o ensino explícito da linguagem na ótica dos estudos de gêneros discursivos é a abordagem metodológica “A RODA” (COPE & KALANTZIS, 1993; MARTIN, 1999). Tal proposta, concebida pela Escola Australiana, caracteriza-se por apresentar um ciclo de atividades didáticas ao se trabalhar com determinado gênero numa dinâmica de três fases, quais sejam: desconstrução ou modelagem, construção conjunta e construção individual.

Na desconstrução, ocorre o levantamento de conhecimentos prévios, negociações e discussões em aula sobre o gênero discursivo em questão. Nessa etapa, também são realizadas leituras exploratórias de exemplares do gênero, seguidas de discussões sobre o contexto (a função social do texto) e o texto (estrutura retórica e características linguísticas) dos exemplares do gênero selecionados. Na construção conjunta, pode envolver inúmeras atividades individuais e/ou em grupos visando à seleção, o compartilhamento e à discussão de informações que podem ser úteis na elaboração do texto de PC. Nessa etapa, os alunos produzem um primeiro texto com a assistência de parceiros mais experientes. A etapa de construção individual envolve o desenvolvimento de atividades relacionadas com o planejamento, a revisão, edição e avaliação de um texto de PC.

 

 

METODOLOGIA

 

Para proceder à análise do gênero notícia de PC, tomamos como referência a perspectiva da Análise Crítica de Gênero articulada com estudos da Análise Crítica do Discurso, do Gênero do discurso na perspectiva Sociorretórica e da Linguística Sistêmico-Funcional.  Também investigamos os conceitos de campo, campo científico e jornalismo científico para compreender a concepção de jornalismo científico, jornalismo, ciência e notícia. Por fim, realizamos estudos sobre o gênero notícia de PC e a análise contextual e textual, a partir de 19 notícias de PC de informática, sendo 10 do jornal Zero Hora e nove do jornal Folha de São Paulo, divulgadas no primeiro semestre de 2009.

Na análise crítica, realizamos, com base na representação esquemática proposta por Motta-Roth e Lovato (2009), a descrição da organização retórica e os expoentes lingüísticos que configuram as notícias de PC de informática em circulação nos jornais impressos Zero Hora e Folha de São Paulo; o estudo do contexto de produção e distribuição dos dois jornais brasileiros, mediante análise de dados documentais identificados no site do jornal ZH e no Manual de Redação da do jornal FSP e a interpretação, por meio das análises mencionadas, como o conhecimento científico da área de informática é produzido e divulgado na mídia impressa estadual e nacional.

Na análise descritiva, procedemos repetidas vezes a leitura dos textos para identificar e marcar os movimentos e passos retóricos, bem como os elementos lingüísticos em cada texto, procuramos perceber, por meio das marcas textuais, as funções de cada movimento; realizamos pesquisas sobre o gênero notícia e interpretamos o discurso de informática divulgados nos dois jornais.

Entre os resultados obtidos, constatamos que os textos de informática no jornal ZH são editados nos cadernos Globaltech, ZH Digital, ZH Classificados Informática, ZH Classificados Produtos e estão sob a responsabilidade da editoria de Economia. Os textos do jornal FSP, por sua vez, são editados no caderno de Informática.

Além disso, observamos que as notícias de PC de informática dos jornais impressos ZH e FSP são organizadas em três movimentos retóricos e três elementos recursivos. No primeiro movimento, identificamos a apresentação da notícia de PC, cujo objetivo consiste em mostrar os resultados de pesquisas considerados mais importantes. No movimento 2, observamos que os jornais apresentam detalhamentos relativos ao fato noticiado com a função de fornecer maiores informações sobre os resultados da pesquisa e/ou metodologia empregada no estudo e/ou embasamento teórico adotado na pesquisa que está sendo noticiada. No movimento 3, identificamos a apresentação de pormenores relacionados com a notícia. O objetivo desse movimento é destacar ou salientar informações suplementares relacionadas com a notícia de PC. Nas notícias, encontramos também a inserção de vozes, a glosa, o uso de metáforas e de textos de apoio.

As análises realizadas permitiram perceber que ambos os jornais reportam resultados de pesquisas de informática que versam sobre estudos descritivos relacionados com a sociedade e ao uso, ou não, de equipamentos tecnológicos; sobre novos produtos criados por profissionais da área de informática e sobre pesquisas experimentais. Essa constatação permitiu inferir que o discurso de informática divulgado nos jornais ora se aproxima da concepção de ciência pós-moderna, ora da ciência moderna. Quando há uma preocupação do jornal em conhecer a realidade social e divulgar produtos tecnológicos que suprir necessidades da sociedade, entendemos que há uma adesão ao conceito de ciência pós-moderna. Quando as notícias de PC valorizam significativamente as vozes de pesquisadores para relatar fatos oriundos das pesquisas, entendemos que essa característica reforça a concepção de um discurso de PC que se aproxima da concepção dogmática, própria da ciência moderna, conforme postula Souza Santos (2003).

 

ATIVIDADES DIDÁTICAS DE LEITURA

Na elaboração das atividades de letramento científico, tomamos como referência uma  classe de alunos de uma escola pública de Santa Maria, nível médio.  Em se tratando do conteúdo, projetamos três atividades voltadas à desconstrução do texto: uma atividade de pré-leitura, uma atividade de leitura e outra de pós-leitura:

Neste estudo, vamos enfocar a elaboração de atividades de leitura introdutórias que levem à desconstrução inicial do exemplar do gênero em questão.

A atividade 1, abaixo, visa a ativar o conhecimento prévio (schemata) dos sujeitos leitores. Tratar da experiência prévia do aluno enquanto leitor do gênero discursivo que será trabalhado é importante, pois as “informações servirão para contextualizar o texto a ser lido (sua função social) e preparar o aluno para agir como um analista do texto” (SCHLATTER, 2009, p. 16).

 

 

Em seguida, com a atividade 2, o aluno é guiado a buscar no texto algumas informações pontuais acerca do assunto tratado, a fim de se inferir o propósito comunicativo subjacente ao gênero discursivo.

Desse modo, num processo de leitura cumulativo, à medida que o aluno avança, ele “compara as informações percebidas às expectativas estabelecidas anteriormente e às hipóteses que ele construiu a partir do seu conhecimento sobre como o mundo e os textos se configuram” (MOTTA-ROTH, 1998, p. 17).

As questões norteadoras da atividade abaixo são as seguintes: “Que texto é esse? Quem escreve ou lê esse texto? Qual é a função do texto no contexto?” (MOTTA-ROTH, 2008, p. 248) “É possível identificar o objetivo comunicativo do texto? É possível nomear o gênero do texto? Que elementos ajudam na identificação?” (MOTTA-ROTH, 2008, p. 255).

 

Após uma discussão oral com os alunos sobre o gênero notícia de PC, as próximas atividades exploram aspectos relativos ao gênero discursivo, sua organização retórica e elementos recursivos. Questionar tais aspectos contribui para que o aluno inicie uma reflexão acerca do processo de popularização da ciência e acerca dos aspectos envolvidos no processo de fazer ciência.

A polifonia é uma característica marcante nesse gênero: “as notícias de PC apresentam uma pluralidade de vozes, expressando a diversidade de atores sociais chamados a opinar sobre o assunto reportado” (BEACCO et al., 2002 apud MARCUZZO; MOTTA-ROTH, 2008, p. 2). Com a atividade 3.2 a seguir, visa-se a levar o aluno refletir sobre: “Quem são os participantes das ações representadas? Qual é a relação entre eles?” (MOTTA-ROTH, 2008, p. 261).

 

 

 

Por fim, como uma atividade de pós-leitura, solicitamos que o aluno reflita sobre o conceito de ciência presente no texto lido, tomando como referência a leitura e as atividades realizadas.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Neste trabalho, tivemos por objetivo apresentar uma proposta de ensino voltada ao letramento científico, mediante o uso de gêneros de popularização da ciência divulgados em jornais. Na elaboração da proposta, partimos do pressuposto de que o aluno precisa desenvolver competências de leitura e julgamos importante que o aluno tivesse contato com textos midiáticos que reportam resultados de estudos científicos da área de Informática direcionados para leitores não especialistas no assunto. Para tanto, elaboramos atividades que exploram a desconstrução e análise de texto e consideramos que o aluno pode aprender a se comunicar na linguagem da ciência e tomar consciência de como a prática social de divulgação da ciência funciona.

Para finalizar, com essas atividades, acredita-se que o aluno pode ampliar seus conhecimentos linguísticos e de mundo, desmistificar possíveis estereótipos criados pelo senso comum sobre ciência e pesquisa científica.

 

REFERÊNCIAS

ANDRADE, P. Literacia científico-tecnológica e opinião pública no quadro da ciência lusófona e do movimento museabilidade. In: C. M. Sousa, N. M. Periço & T. S. Silveira (Orgs.). A comunicação pública da ciência. Taubaté, SP: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. p. 95-112.

COPE, B. e M. KALANTZIS. (Eds.) Introduction: how a genre approach to literacy can transform the way writing is taught. In: COPE, B & ALANTZIS, M (Eds.). The powers of literacy: a genre approach to teaching writing. Bristol, PA: The Falmer Press, 1993. p. 1-21.

…Recife: Centro Paulo Freire Estudos e Pesquisa, 2005. Disponível em: < http://www.paulofreire.org.br/asp/template.asp?secao=coloquios&sub=5coloquio>. Acesso em: 03 mar. 2008.

HALLIDAY, M. A. K.; R. HASAN. Language, context, and text: Aspects of language in a social-semiotic perspective. Oxford: Oxford University Press. 1989.

HILGARTNER, S. The dominant view of popularization: conceptual problems, political uses. Social Studies of Science, v.20, n. 3, p.519-539, 1990.

MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: configuração, dinamicidade e circulação. In.: KARWOSKI, A. M., GAYDECZAKA, B., BRITO, K. S (Orgs). Gêneros textuais: reflexões e ensino. Palmas e União da Vitória, PR: Kaygangue, 2005. p. 17 – 33.

MARTIN, J. Mentoring semogenesis: „genre based‟ literacy pedagogy. In: CHRISTIE, F. (Ed.). Pedagogy and shaping of consciousness: linguistics and social processes. London and New York: Continuum, 1999. p.123-55.

MOREIRA, T. M.; MOTTA-ROTH, D. Popularização da ciência: uma visão panorâmica do Diário de Santa Maria. In.: Círculo de Estudos Linguísticos do Sul (CELSUL), 8, 2008. POA. Anais. Porto Alegre: UFRGS/CELSUL, 2008. 1 CD-ROM.

______________. A popularização da ciência como prática social e discursiva. In: MOTTA-ROTH, D.; GIERING, M. E. (Orgs.). HIPERS@BERES-Discursos de popularização da ciência. 1 ed. Santa Maria, RS: PPGL Editores, 2009, v. 1, p. 130-195. Disponível em <http://w3.ufsm.br/hipersaberes/volumeI/>.

MOTTA-ROTH, D. (Org.)  Leitura em língua estrangeira na escola. Santa Maria: COPERVES/PROGRAD/UFSM, 1998.

_____________. Para ligar teoria à prática: roteiro de perguntas para orientar a leitura/análise crítica de gênero. In: MOTTA-ROTH, D.; CABAÑAS, T. & HENDGES, G. (Orgs.) Análises de textos e de discursos: Relações entre teorias e práticas. Santa Maria: PPGL, 2008, p. 243 – 272.

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SWALES, J. Genre Analysis: English in academic and research settings. Cambridge: Cambridge University Press. 1990.

 



[1] Um paradigma pode ser definido como problemas e soluções modelares, fornecidos por pesquisas universalmente aceitas, a uma comunidade de profissionais (Kuhn, 1962/1970, p.viii).