O IMAGINÁRIO DO/SOBRE O SUJEITO GAÚCHO E HISPANO-AMERICANO ATRAVÉS DE UMA ANÁLISE DISCURSIVA DOS DICIONÁRIOS

Natieli Luiza Branco (UFSM)

 

 

Considerações iniciais

Este trabalho constitui-se de análises parciais obtidas a partir do desenvolvimento do projeto de pesquisa intitulado “Língua, sujeito e história: o gaúcho no processo de dicionarização da Língua Portuguesa no/do Brasil” [1]·; e tem por objetivo reflexionar sobre a produção/circulação de sentidos no dicionário, mais especificamente, nos prefácios e no verbete gaúcho. E assim, verificar como se dá o imaginário sobre o sujeito que é gaúcho e que é hispano-americano. Para isso, propomos uma análise comparativa e discursiva entre dicionários sul-rio-grandenses e hispano-americanos. Nossos objetos de análise são o Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul, de Zeno Cardoso Nunes e Rui Cardoso Nunes, 1984 e o Dicionário Gaúcho Brasileiro, de João Batista Alves Bossle, 2003; os dicionários da língua espanhol são o dicionário da Real Academia Española, 1992, e o Diccionario del Español de América, de Marcos Augusto Morínigo, 1996.

A representação do gaúcho foi evoluindo, tomando diferentes concepções e isso é institucionalizado nos dicionários. Concebemos dicionário como objeto discursivo e o prefácio como material para estudar as condições de produção do discurso, nos quais, juntamente com os verbetes podemos perceber a posição do lexicógrafo/dicionarista em determinado contexto, em determinada formação social; fazendo-se a relação com a sociedade e a história.

De acordo com a Análise de Discurso de linha francesa, tal como foi concebida por Michel Pêcheux e vem sendo desenvolvida no Brasil nas últimas décadas, e pelos princípios metodológicos propostos por Horta Nunes em seus estudos sobre os dicionários no Brasil, este trabalho desenvolve-se uma análise discursiva e comparativa entre esses dicionários, seus prefácios a fim de verificar possíveis aproximações ou diferenciações entre uma imagem de gaúcho e outra.

Comumente tem-se uma visão de dicionário como um objeto de consulta, onde fica transcrita a língua culta; é o lugar da certeza, não cabe a dúvida. É onde, em nossos momentos de incerteza, recorremos para saber o significado de determinada palavra. Não deixa de ser uma referência, uma obra de consulta. Porém, se por um lado o dicionário é visto como referência, um discurso da certeza, por outro, ele tem sua historicidade. Se tomarmos dicionários de diferentes épocas, percebemos que há transformações, atualizações, renovações. O dicionário possibilita “observar os modos de dizer de uma sociedade e os discursos em circulação em certas conjunturas históricas” (Nunes, 2006, p. 11). Ainda segundo esse autor, no dicionário “as significações não são aquelas que se singularizam em um texto tomado isoladamente, mas sim as que se sedimentam e que apresentam traços significativos de uma época.” (p. 11), ou seja, o dicionário não é somente lugar de consulta, de certeza, ele faz parte de uma historicidade, de uma época e é, portanto, “lugar de observação do léxico”. (Nunes, 2001, p.101).

Para este trabalho, tomamos o dicionário como objeto de análise e propomos um olhar sobre ele como objeto discursivo, ou seja, vê-lo como discurso. E discurso é produção de sentidos. Assim, como diz Pêcheux (1990), produção de sentidos entre interlocutores. E nosso método de análise é o proposto pela Análise de Discurso (AD) de linha francesa, pois permite olhar para o dicionário compreendendo o movimento de sentidos.

A AD coloca em questão o ‘como’: ‘como esse texto é produzido?’. E não procura uma resposta exata, mas a constituição do conhecimento a partir do texto. Por mais que o dicionário forneça a ilusão de estabilidade, a AD procura compreender o movimento dos sentidos nos dicionários.

 

 

Algumas considerações teóricas

 

Para este trabalho, tomamos como objetos de análise dicionários regionalistas do Rio Grande do Sul e dicionários da língua espanhola. Queremos a partir destes, realizar algumas verificações iniciais dessas transformações, manutenções, atualizações de sentidos via dicionarização do verbete gaúcho.

Para tanto, primeiramente propomos uma introdução sobre algumas considerações teóricas, envolvendo a questão do discurso, sentidos, dicionário na perspectiva da Análise de Discurso (AD) e História das Idéias Lingüísticas (HIL), para depois falarmos sobre o verbete gaúcho, que mostra imagens do sujeito gaúcho para com isso, poder verificar a relação entre sujeito e saber lingüístico.

Cabe destacar neste trabalho, já que nos propomos a realizar uma análise discursiva, falar sobre o que consideramos por discurso. Discurso, segundo Orlandi (2009) é o lugar em que a ideologia e língua se relacionam, com produção de “sentidos por/para os sujeitos” (p. 17).

O discurso é o funcionamento da linguagem, onde podemos perceber os sentidos e a constituição de sujeitos através da mesma. Orlandi (2009) traz definição de discurso como “efeito de sentido entre os locutores” (idem, p. 21). Os sentidos se estabelecem na relação entre locutores.

Para entender o sentido se deve ir além da evidência. Os sentidos se relacionam com a exterioridade, remete-se à memória, à circunstância e não dependem somente da intenção do sujeito.

Para que haja sentido, segundo Orlandi (2009), deve haver relação do sujeito com a língua e com a história e a ideologia intervém nessa relação para o funcionamento do imaginário. É pela ideologia que há a constituição das imagens e do sujeito. Porém, não há sujeito nem sentidos completos. “É no corpo a corpo com a linguagem que o sujeito (se) diz” (idem, p. 53). E linguagem é incompletude. Não há uma significação dada, os sentidos se constituem em formações discursivas que se relacionam com o simbólico. Os sentidos se movimentam, pois se fixam na língua e na história.

É desse modo que temos que olhar para o dicionário, como discurso. E “como todo discurso, o dicionário tem uma história, ele constrói e atualiza uma memória, reproduz e desloca sentidos, inscrevendo-se no horizonte dos dizeres historicamente constituídos” (Nunes, 2006, p. 18).

Falamos em tratar o dicionário na perspectiva da AD e HIL; isso porque a articulação entre a Análise do Discurso e a História das Idéias Lingüísticas mostra-nos os dicionários como lugar de descrição das línguas, responsáveis pela reprodução, transformação e circulação dos discursos em uma sociedade, como afirma Nunes (2006).

 

Os dicionários e seus prefácios

Segundo Nunes (2006), os prefácios são materiais importantes para verificar as condições de produção do dicionário. Entendem-se condições de produção como “formações sociais e os lugares que os sujeitos aí ocupam” (idem, p. 19). É nesse espaço que percebemos a posição do sujeito dicionarista.

O prefácio, segundo Petri (2009), é entendido como um texto com funcionamento próprio, ele pode ser produzido pelos editores, pelo autor ou pode ser escritos por terceiros. De qualquer forma, seja na posição de editor, autor, ou por terceiros, os prefácios revelam a ideologia, a história, a posição sujeito presente em cada obra, além de representar a obra, enaltecendo-a.

Traremos agora, para análise e reflexão os prefácios dos dicionários em questão. Comecemos pelos dicionários regionalistas.

O Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul apresenta dois textos introdutórios: um assinado por Hugo Ramirez e outro é uma “Nota dos Autores”. O primeiro texto é uma apresentação dos autores e da obra, assinado por Hugo Ramirez, que é poeta, percebendo, desse modo, que sua linguagem é aquela utilizada pelos poetas (de exaltação, rebuscada...); os autores são falados pelo outro, assim, aparece que os sujeitos dicionaristas são “dois gaúchos autênticos”, “trazendo na veia o sangue bandeirante dos velhos conquistadores”, “poetas”, “tranqüilos”. Neste texto, também há a caracterização de um dicionário de regionalismos (“abraçar todas as tropilhas vocabulares”, “obra valoriza, sobremodo e antes do mais, o patrimônio semantológico e coloquial do Brasil, em sua área de cultura meridional”, “glossário dialetológico”); ressalta-se também o valor do tradicionalismo e de um dicionário regionalista (“a obra [o dicionário] os consagra [os autores], sem dúvida, mas consagra mais ainda ao Movimento Tradicionalista Gaúcho”), bem como o trabalho do dicionarista. Podemos perceber, concordando com Petri (2008), que este recorte de Hugo Ramírez dá ao dicionário regionalista o “estatuto de lugar do saber lingüístico, de abrangência superior à região a qual se refere prioritamente” (idem, p. 235).

No segundo texto, assinado pelos autores, marca o tempo realizado para fazer o dicionário, bem como a descrição do seu processo: no começo, o dicionário continha somente termos tipicamente gaúchos, utilizados no interior do RS, mas aos poucos se foi enriquecendo com termos falados em todo o território rio-grandense, com expressões também de obras, em prosa ou verso. Também mostra que a realização de um dicionário não é uma tarefa fácil e ele não é uma simples obra, há aqui, também, o engrandecimento da obra. O espaço, de onde os autores falam, também é demarcado: interior do Rio Grande do Sul, ressaltando a “linguagem falada em nossa Querência”.

No Dicionário Gaúcho Brasileiro há dois textos introdutórios, um com o título “Nota da Editora” e outro intitulado “Nota do Autor”. No primeiro texto, também há a caracterização de um dicionário de regionalismo, esse tipo de dicionário é um dicionário “específico” da língua e requer mais atenção e responsabilidade do editor. Esses dicionários “específicos” (também há a utilização do termo “temático”) são necessários para “reunir, coligir e descrever a fonte e o significado de termos que num extremo do Brasil são familiares e no resto do território nacional soam quase como bizarrices”. Percebemos também uma série de enunciados da caracterização adjetivadora da obra: ela é “resultado de anos e anos de pesquisa atenta, criteriosa, sistemática”,” o mais completo e rigoroso do gênero”, “natureza generosa”, “esclarecimento de dúvidas”, “informação de quantidade acima da média”, “item bibliográfico”.

No texto referente à “Nota do Autor” o sujeito dicionarista expõe sua trajetória; ressalta também a importância da obra (“é fundamental que um país como o Brasil, continental pela extensão geográfica e pela diversidade cultural, tenha registrado em dicionário seu imenso e multifacetado universo lexical”). Há marcas do processo do dicionário (“foi uma década e meia de muita pesquisa”), pesquisa realizada em CDs, literatura, ajuda de amigos, pesquisadores, autores, professores, compositores, cantores, pessoas ligadas ao tradicionalismo. Assim, a funcionalidade da obra é “colaborar com todos aqueles que procuram um melhor entendimento para o nosso linguajar”.

O dicionário de termos regionalistas funciona como um lugar de referência e de preservação de um patrimônio lingüístico-cultural, conforme nos diz Petri (2008); por autores preocupados com a conservação da cultura gaúcha.

Por outro lado, o que podemos observar nos prefácios dos dicionários da língua espanhola é uma preocupação com a diversidade lingüística dos países hispano-americanos; há diferenças semânticas, lexicais, dialetais na própria língua, embora os dicionários da Real Academia Espanhola apontam para a unidade linguística.

O Diccionario del Español de América, é produzido por um pesquisador argentino que investigou as conseqüências lingüísticas da colonização da América pelos espanhóis (como nos mostra o seu prefácio). O autor dedicou-se em estudar as influências léxicas das línguas indígenas americanas na língua espanhola. Percebe-se, no dicionário conforme o seu prefácio, a preocupação em mostrar a diversidade lingüística que há entre o espanhol hispano-americano e o espanhol peninsular. Esta obra está em sua segunda edição, impressa em Gran Bretanha e após a morte do sujeito lexicógrafo.

O prefácio do dicionário possui dois textos, um intitulado de “Introducción” e outro intitulado “Criterios para este Diccionario”, não há quem assina os textos. No primeiro texto introdutório há a qualificação do sujeito lexicógrafo e posterior, da obra. Traz que essa obra “es resultado de estudios y esfuerzos” do seu autor por vários anos, mais precisamente, cinqüenta anos. O processo para a realização da obra foi o recolhimento do vocabulário americano de cronistas, historiadores, literatos do século XVI e XVII; depois outros investigadores colaboraram com obras literárias mais recentes. Segue o texto, mostrando que essa versão do dicionário apresenta algumas mudanças, “correcciones necesarias” para melhor compreensão do dicionário. Percebemos, então, a idéia de dicionário como objeto de consulta cuja regularidade normativa deve estar presente. Esse texto introdutório mostra, ao sujeito leitor, a diversidade lingüística e a criação léxica na América; propõe uma explicação dessa variedade lexical, por exemplo, por causa da contribuição do léxico indígena à língua espanhola. Outro ponto tratado é a questão da diversidade lingüística entre a fala usual da Hispanoamérica e Espanha, e cita as diferenças temáticas, fonéticas, semânticas e lexicais. Traz as vozes de outros autores, nomes importantes para a história das línguas, autores de dicionários para a discussão desse tema. Nesse prefácio, o que se destaca são as diferenças semânticas, dialetais, léxicas entre países de mesma língua. O dicionário é tratado como documento e estudo do léxico, dando início aos estudos dialetais do espanhol americano. Podemos perceber que se desfaz a idéia de igualar o espanhol de América com o da Espanha, o que se percebe nos dicionários da Real Academia Española. O autor denomina isso como pluralidade lingüística e vê como positiva.

No outro texto deste prefácio (“Criterio para este Diccionario”), aparece uma explicação do propósito deste dicionário. Essa obra se destina a “ofrecer a los lectores de obras literarias, históricas, sociológicas, científicas hispanoamericanas un instrumento de trabajo eficaz”. Percebemos aqui a imagem de sujeito leitor. A obra se destina a pessoas cultas da língua espanhola. Mas não é qualquer pessoa culta: pessoas que “carecen de un conocimiento pormenorizado de las variaciones regionales americanas”; a obra também se destina a professores e alunos interessados em ensinar e/ou aprender a realidade hispanoamericana e até a hispanistas estrangeiros que querem adquirir o espanhol americano. Aqui, ressalta-se, outra vez, a denominação espanhol americano e espanhol peninsular. Neste texto, também se apresenta o que é indigianismo e americanismo, visto que aparecem alguns vocábulos no dicionário. Apresenta que a maior tarefa desse dicionário foi a seleção do material e um problema que o sujeito lexicógrafo enfrenta é a etimologia das palavras indígenas. Podemos perceber que a caracterização da obra é um “ensayo del futuro diccionario de la lengua española americana que debe compilarse con el esfuerzo coordinado y metódico de las instituciones y de los investigadores que se dedican al estudio de las lenguas y de español de América”.

O dicionário da Real Academia Española está na sua 21ª edição e esta edição ocorreu, conforme trata o seu prefácio, por causa da comemoração do V Centenário do Descobrimento da América, esse dicionário traz, então, a incorporação de propriedades léxicas e semânticas de cada país de língua espanhola e a incorporação de neologismos, aumentando o número de verbetes. Aqui, ao contrário do prefácio do dicionário anterior, há a idéia de unidade lingüística.

Nos prefácios dos dicionários pode-se observar a tomada de posição do sujeito dicionarista, interpelado pela sua história, pela sua ideologia; mas não se trata de um sujeito empírico, mas sim verificar sua posição ante uma formação discursiva dada.

 

Os dicionários e o verbete gaúcho

Nesta parte do trabalho, traremos para reflexão o verbete gaúcho presentes nesses dicionários. A representação do gaúcho foi se alterando, tomando diferentes concepções e isso é institucionalizado nos dicionários; ele passa por diferentes sentidos para ser designado como um tipo social geograficamente posicionado.

 

A designação gaúcho vem de um outro lugar, instaura-se ao sul da América, recupera sentidos, transforma-se e passa a significar de diferentes formas através dos tempos, conforme reinvenção imaginária, mas na maioria das vezes nos remete às relações entre o homem e às coisas da terra, caracterizando de forma mais genérica o gaúcho como um ser essencialmente telúrico. (Petri, 2008, p. 230)

 

A designação gaúcho vem de um outro lugar, instaura-se ao sul da América, recupera sentidos, transforma-se e passa a significar de diferentes formas através dos tempos, conforme reinvenção imaginária, mas na maioria das vezes nos remete às relações entre o homem e às coisas da terra, caracterizando de forma mais genérica o gaúcho como um ser essencialmente telúrico. (Petri, 2008, p. 230)

E no caso específico de um dicionário regionalista, há sentidos promovidos pelos falantes daquela região. Os dicionários de regionalismos funcionam como preservação do léxico gaúcho, fazendo-se pensar em uma identidade regional. Pois esses dicionários ao mesmo tempo em que atualizam um saber, o mantém, para não se perder essa linguagem gaúcha, como já afirmamos anteriormente. E através dos instrumentos lingüísticos se coloca em destaque um imaginário sobre o gaúcho e seu linguajar. Como coloca Petri (2010), trata-se da manutenção de saberes, da manutenção de uma história, de uma identidade dita como “gaúcha”, via especificidade lingüística.

O Dicionário Gaúcho Brasileiro (2003) traz a definição de gaúcho em duas páginas e o classifica o verbete também em substantivo e adjetivo; sua primeira acepção é: “o habitante ou natural do Rio Grande do Sul” seguido de “pessoa do interior [...] dedicado à vida pastoril e perfeito conhecedor das lidas campeiras.” Aqui, o sujeito dicionarista retoma as definições já dadas ao gaúcho. Ele também apresenta sua ordem cronológica: “antigamente: caçador de gado selvagem, contrabandista, teatino, andejo, coureador, desregrado, gaudério, changador [...] com o tempo, a partir de meados do século XIX, a palavra perdeu sua conotação pejorativa, revestindo-se de conteúdo nitidamente elogioso, de homem digno, bravo e destemido.” Apresenta exemplos com canções nativistas para reforçar sua definição. Na sua definição sobre o gaúcho, ele mantém a imagem do sujeito gaúcho como habitante dos pampas, corajoso, destemido, menciona suas mudanças de concepções ao longo dos tempos, mas atualiza a definição do verbete dando mais características ao sujeito gaúcho.

O que se percebe nesse dicionário é a manutenção do sentido da imagem do sujeito gaúcho, mas também a atualização de sentidos, visto que esse dicionário é dirigido a um sujeito-leitor do século XXI.

O Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul traz a definição de gaúcho em 16 páginas; o sujeito dicionarista busca suas referencias em literatura, pesquisadores e músicas tradicionalistas. Ao decorrer dessas páginas, o sujeito dicionarista diz, repete, mantém, exemplifica a definição de gaúcho. Traz o verbete como substantivo e adjetivo. As primeiras três acepções designam o gaúcho como “habitante do Rio Grande do Sul”; “habitante do interior do Rio Grande do Sul, dedicado à vida pastoril e perfeito conhecedor das lidas campeiras”; “habitante da Argentina e do Uruguai [...] com origem e costumes assemelhados aos dos rio-grandenses”. Após essas definições que marca o verbete como substantivo, aparece a palavra “primitivamente” em que introduz uma adjetivação do sujeito gaúcho; segue a acepção a respeito da etimologia. Para marcar sua posição, o sujeito dicionarista, acrescenta ao verbete exemplos de outros textos, de outros autores. O que destacamos com isso é a importância de conservar a imagem do sujeito gaúcho sempre tão presente nos dicionários.

O Diccionario del Español de América apresenta a definição de gaúcho em três páginas. Apresenta primeiramente a palavra como substantivo. Diferentemente como aparece nos dicionários regionalistas, a primeira definição se refere ao homem do Rio da Prata: “hombre de campo del Río de la Plata”. Depois dessa acepção, aparece a descrição do gaúcho. Se antes o sujeito lexicógrafo fala em “jinete [...] diestro en los trabajos de la ganadería”, depois fala que esse tipo de gaúcho foi desaparecendo. Quem sabe por que a imagem de gaúcho de adestrador de gado não é a do gaúcho de hoje. Por um lado, o sujeito dicionarista aponta que o gaúcho destro nas lidas do campo está desaparecendo, mas por outro lado, ele afirma que a idealização do gaúcho prevalece. A idealização do gaúcho é a de “arquétipo humano, poseedor de las máximas virtudes viriles en que el hombre rioplatense quiere verse retratado”. Depois, segue coma adjetivação do gaúcho, partindo de homem sóbrio, de poucas necessidades, passando por homem que ama sua liberdade, chegando a generoso e leal. Após, segue a etimologia da palavra. Apresenta que o termo gaúcho nasceu da tríade Argentina-Uruguai-Brasil. Diferentemente dos dicionários brasileiros, esse dicionário mostra que o gaúcho faz parte desses três países. Também na acepção do gaúcho, esse dicionário traz a questão da raça: pode ser branco, negro, índio, mulato ou mestiço. Trata também da fala, que os dicionários regionalistas sul-rio-grandenses trazem como “linguajar gaúcho”: o gaúcho usa metáforas e comparações da vida campeira. A partir daqui, o sujeito lexicógrafo traz datas, menções de documentos de como apareceu o gaúcho. A data da primeira menção documental do gaúcho é de 23/10/1771. Em 1771 data a primeira menção do gaúcho; em 1787 data o desprestigío do gaúcho, divulgado em jornal; em 1729 é a data que aparece o termo changador e em 1746, aparece o termo gauderio. Dados esses, que os dicionários regionalistas não trazem.

No começo, século XVI, ser gaúcho era motivo de desprestígio, apesar de ser conhecido na região, ele se assemelhava a vagabundo, ladrão, vaqueiro que matava gado. Porém, a voz do gaúcho foi se alterando. O gaúcho era usado tanto em terras espanholas como no Rio Grande do Sul. Depois de expor as origens do gaúcho, o sujeito lexicógrafo conclui que “la etimología de gaucho [...] es lingüística, histórica y culturalmente no sólo inobjetable, sino plenamente verosímil”. Apresenta ainda o ponto de vista semântico: a variação de gaúcho para gaucho; porque a forma arcaica é gaúcho a qual prevaleceu no Brasil.

O gaúcho no século XVIII era sinônimo de changador, gauderio, tendo uma imagem de ladrão de gado, nômade, perverso. No século XIX, essas acepções mudaram. A incorporação desses gaúchos no exercito, passou-se uma imagem de melhor estima. Depois das revoluções, a vida no campo mudou, o gaúcho passou a assentar-se nas estâncias. A Literatura e a História, a partir do século XIX, fizeram com que a imagem do gaúcho fique para a posterioridade.

O dicionário da Real Academia Española traz o termo gaúcho em dois verbetes, sendo um definindo o vocábulo como substantivo e outro, como adjetivo. Na acepção substantiva apresenta uma designação no passado, trata da condição do gaúcho no século XVII e XIX. E na acepção como adjetivo, menciona os países hispanoamericanos. Destacamos que o Brasil é mencionado na definição substantiva.

 

Considerações finais

 

Nessa reflexão inicial sobre a dicionarização do sujeito gaúcho, podemos observar que, tomados dicionários de diferentes épocas e produzidos por diferentes sujeitos dicionaristas, há manutenção e atualização dos saberes. Olhando o dicionário como objeto discursivo, têm-se efeitos de sentidos diferentes sobre o mesmo verbete.

Nesse breve estudo sobre a dicionarização do sujeito gaúcho, reflexionamos sobre a constituição e institucionalização dos dicionários para perceber como se dá essa imagem do sujeito que se diz gaúcho e tem seu próprio linguajar. Podemos observar que a representação do gaúcho foi se alterando, tomando diferentes concepções e isso é institucionalizado nos dicionários.

Podemos perceber nos prefácios dos dicionários da língua espanhola que se tem uma preocupação com a diversidade lingüística dos países hispanoamericanos; há diferenças semânticas, lexicais, dialetais na própria língua. Nos verbetes, percebemos a definição do gaúcho hispano-americano em detrimento do gaúcho rio-grandense. Percebendo-se o contrário nos dicionários regionalistas do Rio Grande do Sul.

Assim como a língua se modifica, movimenta-se, o dicionário não conseguirá apreender tudo, por isso verificamos a produção e circulação de sentidos.

Os dicionários, conforme Auroux (1992), são instrumentos discursivos estabelecendo relação entre sujeitos e saber lingüístico. São instrumentos de reprodução de um imaginário, produzidos com uma história; um espaço de circulação de saberes. O funcionamento discursivo presente nesses instrumentos remete a uma produção de sentidos entre língua e sujeito.

 

 

 

Referencias bibliográficas

AUROUX, Sylvain. A revolução tecnológica da gramatização. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas: Editora da Unicamp, 1992

NUNES, José Horta. O espaço urbano: a “rua” e o sentido público. In: Orlandi, Eni (org.). Cidade atravessada: os sentidos públicos no espaço urbano. Campinas: Pontes, 2001, p. 101-109.

NUNES, José Horta. Dicionários no Brasil: análise e história do século XVI ao XIX. Campinas, SP: Pontes Editores – São Paulo, SP: Fapesp – São José do Rio Preto, SP: Faperp, 2006.

ORLANDI, Eni P. Análise do discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 2009.

PÊCHEUX, M. Análise Automática do Discurso. in Por uma análise automática do discurso. Campinas: Editora da Unicamp, p. 61-161, 1990.

PETRI, Verli. A produção de efeitos de sentidos nas relações entre língua e sujeito: um estudo discursivo da dicionarização do “gaúcho”. Revista Letras. Nº 37. P. 227-243. Jul/Dez, 2008.

PETRI, Verli. A emergência da ideologia, da história e das condições de produção no prefaciamento dos dicionários. In: INDURSKY, F.; FERREIRA, M. C. L.; MITTMANN, S. O discurso na contemporaneidade: materialidades e fronteiras. São Carlos: Claraluz, 2009. P. 329-336.

PETRI, Verli. Reflexões acerca do funcionamento das noções de língua e de sujeito no Dicionário de regionalismos do Rio Grande do Sul. Revista Línguas e Instrumentos Lingüísticos. Nº. 23/24. Disponível em:

<http://www.revistalinguas.com/edicao23_24/edicao23_24.html>. Acesso em: 01/10/2010.

Dicionários utilizados como objetos de análise:

Dicionário Gaúcho Brasileiro. BOSSLE, João Batista Alves, Porto Alegre, RS: Artes e Ofícios,2003.

Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul. NUNES, R.C.;NUNES,Z.C.; 2 ed. Porto Alegre, RS: Martins Livreiro, 1984.

Dicionário da Real Academia Española. 21ª edição. Madrid: Editorial Espasa Calpe, 1992,

Diccionario del Español de América. MORÍNIGO, Marcos Augusto. 2ª edição, 1996.

 



[1] Projeto orientado pela Profª. Drª. Verli Petri (financiamento FIPE/UFSM)